Perdida na História

Perdida na História

sábado, 27 de agosto de 2011

O "fiel amigo"

"Bacalhau para os povos de língua portuguesa; Stockfish para os anglo-saxónicos; Torsk para os dinamarqueses; Baccalà para os italianos; Bacalao para os espanhóis; Morue, Cabillaud para os franceses; Codfish para os ingleses."


      Mundialmente apreciado, a história do bacalhau remonta a milénios atrás. Há registos de  fábricas para processamento do Bacalhau na Islândia e na Noruega no Século IX. 

     Contudo, são os Vikings os pioneiros na descoberta do cod gadus morhua, espécie que era farta nos mares que navegavam. Como não tinham sal, apenas secavam o peixe ao ar livre, até que perdesse quase um quinto do seu peso e "endurecesse como uma tábua de madeira, para ser consumido aos pedaços nas longas viagens que faziam pelos oceanos".



       Já os pioneiros no seu comércio foram mesmo os Bascos, habitantes das duas vertentes dos Pirinéus Ocidentais, do lado da Espanha e da França. Os Bascos conheciam o sal e existem relatos de que já no ano 1000, realizavam o comércio do bacalhau curado, salgado e seco.  Terá sido na costa de Espanha, então, que o bacalhau começou a ser salgado e depois seco nas rochas, ao ar livre, para que o peixe fosse melhor conservado.


Também houve Guerras...

      O bacalhau foi uma revolução. Na realidade, durante milénios os alimentos estragavam-se pela precária conservação, pelo que o seu comércio era limitado. O método de salgar e secar, além de garantir a sua perfeita conservação mantinha todos os nutrientes (e apurava o paladar).



      Desta forma, um produto de tamanho valor sempre despertou o interesse comercial dos países com frotas pesqueiras.

- Em 1510, Portugal e Inglaterra firmaram um acordo contra a França.
- Em 1532, o controlo da pesca do bacalhau na Islândia deflagrou um conflito entre ingleses e alemães conhecido como as "Guerras do Bacalhau".
- Em 1585, outro grande conflito envolveu ingleses e espanhóis.



      Efectivamente, ao longo dos séculos, várias legislações e tratados internacionais foram assinados para regular os direitos de pesca e comercialização do tão cobiçado peixe. Actualmente, com a espécie ameaçada de extinção em vários países, como o Canadá, tratados internacionais para controlo da pesca estão a ser revistos, para assegurar a reprodução e a preservação do "Príncipe dos Mares".

O "fiel Amigo"


"Devemos aos portugueses o reconhecimento por terem sido os primeiros a introduzir, na alimentação, este peixe precioso, universalmente conhecido e apreciado".
(Auguste Escoffier, chef-de-cuisine francês, 1903).

      Os portugueses descobriram o bacalhau no século XV, na época das grandes navegações. Precisavam de produtos que não se estragassem facilmente, que suportassem as longas viagens, que levavam às vezes mais de 3 meses de travessia pelo Atlântico.




      Realmente, foram feitas várias tentativas com vários peixes da costa portuguesa, mas foram encontrar o peixe ideal perto do Pólo Norte. Foram os portugueses os primeiros a ir pescar o bacalhau na Terra Nova (Canadá). Há registos de que em 1508 o bacalhau correspondia a 10% do pescado comercializado em Portugal.
      Já em 1596, no reinado de D. Manuel, mandava-se cobrar o dízimo da pescaria da Terra Nova nos portos de Entre Douro e Minho. Também pescavam o bacalhau na costa da África.
     Assim, o bacalhau foi imediatamente incorporado nos hábitos alimentares, sendo até hoje uma das principais tradições portuguesas. Tornámo-nos os maiores consumidores de bacalhau do mundo, designando-o por "fiel amigo".




"Este termo carinhoso dá bem uma idéia do papel do bacalhau na alimentação dos portugueses".
“Os meus romances, no fundo, são franceses, como eu sou, em quase tudo, um francês – excepto num certo fundo sincero de tristeza lírica que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho, e no justo amor do bacalhau de cebolada!”Eça de Queiroz ( carta a Oliveira Martins )


A incerteza da pesca

      O bacalhau chegava a Portugal de várias formas. Até o meio do século XX, os próprios portugueses aventuravam-se pelos perigosos mares da Terra Nova, no Canadá, para a pesca do bacalhau.
      "Nos finais do séc. XIX, as embarcações portuguesas enviadas à pesca do Bacalhau eram de madeira e à vela, sendo praticada a pesca à linha. Tratava-se de uma prática muito trabalhosa, apenas rentável em regiões onde abundava o peixe. Este tipo de pesca era praticado a partir dos dóri: pequenas embarcações de fundo chato e tabuado rincado, introduzidas em Portugal nos finais do século passado."

( Extraído de Apontamentos Etnográficos de Aveiros  http://www.dlc.ua.pt/etnografia).







      "Na pesca do bacalhau, tudo era duplamente complicado. Maus tratos, má comida, má dormida...Trabalhavam vinte horas, com quatro horas de descanso e isto, durante seis meses. A fragilidade das embarcações ameaçava a vida dos tripulantes" dizia Mário Neto, um pescador que viveu estes episódios e pode falar deles com conhecimento de causa.
      Quando chegava à Terra Nova ou Gronelândia, o navio ancorava e largava os botes. Os pescadores saíam do navio às quatro da manhã e só regressavam à mesma hora do dia seguinte, com ou sem peixe e uma mínima refeição: chá numa termos, pão e peixe frito. No navio, o bacalhau era preparado até às duas ou três da manhã. Às cinco ou seis horas retomava-se a mesma faina. Isto, dias e dias a fio, rodeados apenas de mar e céu. ... Vidas duras...!"
Teresa Reis
     
      Actualmente, Portugal importa praticamente todo o bacalhau salgado e seco que consome. Também importa muito bacalhau "verde", que é salgado e curado nas próprias indústrias portuguesas, como a Riberalves, localizada em Torres Vedras.


O "fiel amigo" e a Religião

      A Igreja Católica, na época da Idade Média, mantinha um rigoroso calendário onde os cristãos deveriam obedecer aos dias de jejum, excluindo de sua dieta alimentar as carnes consideradas "quentes". O bacalhau era uma comida "fria" e o seu consumo era incentivado pelos comerciantes nos dias de jejum. Com isso, passou a ter forte identificação com a religiosidade e a cultura do povo português.

      "O número de dias de jejum e abstinência a que se sujeitavam anualmente os portugueses era considerável, não se limitando ao período da Quaresma, a época do ano em que o bacalhau era "rei" à mesa. Segundo Carlos Veloso, durante mais de um terço do ano não se podia comer carne. Assim era na "Quarta-Feira de Cinzas e todas as Sextas e Sábados da Quaresma, nas Quartas, Sextas e Sábados das Têmperas, (n)as vésperas do Pentecostes, da Assunção, de Todos-os-Santos e do dia de Natal e ainda nos dias de simples abstinência, ou seja, todas as Sextas-Feiras do ano não coincidentes com dias enumerados para as solenidades, os restantes dias da Quaresma, a Circuncisão, a Imaculada Conceição, a Bem-Aventurada Virgem Maria e os Santos Apóstolos Pedro e Paulo."

      O rigoroso calendário de jejum foi, a pouco e pouco, sendo desfeito. Já a tradição do bacalhau  mantém-se forte nos países de língua portuguesa até aos dias de hoje, principalmente no Natal e na Páscoa, as datas mais expressivas da religião católica.


Comida de pobre?

      Durante muitos anos o bacalhau foi um alimento barato, sempre presente nas mesas das camadas populares. Era comum nas casas portuguesas e brasileiras servido às sextas-feiras, dias santos e festas familiares.
     Porém, após a 2ª Guerra Mundial, com a escassez de alimentos em toda a Europa, o preço do bacalhau aumentou, restringindo o consumo popular. Ao longo dos anos foi mudando o perfil do consumidor do bacalhau, e o consumo popular do peixe passou-se a concentrar, principalmente, na principal festa cristã: o Natal.



      Se por um lado é certo que no Sul de Portugal há outros pratos típicos de Natal, é no Norte que este prato assume por si só toda a importância da festa.
      Em Portugal são incontáveis o número de receitas culinárias com o "fiel amigo", existe para todos os gostos, de todas as formas e feitios.


     
      Conheço quem diga que bacalhau é óptimo todo o ano, mas no Natal tem um sabor especial.

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