Perdida na História

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domingo, 5 de abril de 2020

A cabeça de Mozart e o Sudário de Turim


1. A cabeça perdida

     Em 2005, uma equipa de investigação de Innsbruck, liderada pelo geneticista Walther Parson, estudou um dos mistérios mais estranhos da história recente da Europa. Após uma análise minuciosa, a equipa de investigação tinha em mãos a possível identificação da cabeça, nada mais, nada menos do que de Mozart.
     Apesar da actual fama do compositor, Mozart morreu em 1791 numa situação de pobreza extrema, sendo enterrado no cemitério de São Marcos, em Viena. Dez anos depois, a sepultura onde o corpo foi depositado é reaberta guardando o Crânio do compositor, já que os ossos seriam posteriormente removidos para reutilização da sepultura. O crânio passa, então, por várias mãos até 1902, onde, através de uma doação anónima, é adquirido pela Fundação Internacional Mozarteum em Salzburgo, Áustria. O crânio permanece em exibição até 1955, quando a fiabilidade da sua identidade começa a ser então questionada. Seria efectivamente o crânio de Mozart?


2. "Mozart era uma mulher"?

     Em 1999, o patologista forense Herbert Ullrich examina o crânio. As conclusões do seu estudo parecem extraordinárias: não só afirma que o crânio não é de Mozart, como na realidade pertence a uma mulher. Os resultados em questão causam uma verdadeira revolução. Seriam agora necessários outros seis anos para que o crânio voltasse a ser visto pelos olhos da ciência.
     Já em 2005, a genética teve a oportunidade de analisar o crânio, confirmando que pertencia a um homem. Porém, a questão central de toda a polémica continua ser ver a luz do dia. Não foi possivel determinar se a cabeça pertencia ou não ao compositor. A análise realizada baseou-se no estudo de DNA mitocondrial, que não coincidiu com os possíveis parentes por via materna encontrados no mesmo túmulo onde anos antes tinham retirado a suposta cabeça do compositor. A investigação poderia, por tanto, significar duas coisas. Primeiro, que a cabeça não pertencia a Mozart. Segundo, apesar de complexa, a investigação não excluía a hipótese da cabeça pertencer ao músico, residindo o problema no não parentesco entre os cadáveres encontrados e o compositor.


Imagem associada a Mozart. Fonte: Google.

3. A linhagem materna: identificar a Mozart e a Jesus Cristo?

     Para a identificação da suposta cabeça do compositor, os geneticistas analisaram amostras de ossos de dois possíveis parentes maternos, duas mulheres, enterrados no mesmo túmulo onde ele teria estado. Para levar a cabo este estudo, foi usado um tipo especifico de DNA, encontrado em todas as células humanas nucleadas, num organelo muito específico (as mitocôndrias), em elevadas concentrações - o DNA mitocondrial. Este tipo de informação genética é transmitida apenas através da mãe para todos os seus descendentes (linhagem materna), sendo por isso partilhado por toda a linhagem materna, durante várias gerações: avó materna, irmãos, filhos, tios e tias maternos, etc, todos compartirão a mesma informação por vía materna. 
     No entanto, o facto de ser um marcador de linhagem não permite uma identificação individual precisa, uma vez que o mesmo perfil genético é transmitido pela linha materna ao longo de gerações, impossibilitando a distinção entre duas primas maternas ou dois irmãos. Esse tipo de identificação indireta é usado especialmente nos casos em que não há evidências do indivíduo para comparar (identificação direta), como roupas ou outros objetos pessoais, a partir dos quais uma comparação genética seria feita com a suposta cabeça do músico. Por outro lado, é uma análise muito frequente em casos de natureza arqueológica, justamente pela falta de objetos pessoais dos indivíduos em questão, quase sempre com uma antiguidade considerável. De facto, o uso dos marcadores de linhagem é o único tipo de análise possível, já que se espera encontrar um possível descendente vivo, com quem a amostra arqueológica será comparada. Se, por um lado, esse tipo de análise genética é o único possível, é necessário ter em consideração as limitações da biologia associada a esse tipo de estudo. Assim, se por um lado a análise dos possíveis parentes de Mozart poder-nos-ia ajudar a guiar a investigação, por outro lado, "identificando" a cabeça como sendo do compositor, seria certamente um erro. Como já referido, analisar esse marcador de linhagem, transmitido por apenas uma via biológica - materna, a cabeça podería ser de Mozart, ou de qualquer outro parente relacionado com ele por via materna. Efectivamente, esta caracteristica não excluiría parentes do sexo feminino, já que o DNA mitocondrial não se altera de acordo com o sexo do indivíduo. Sem dúvida, é uma limitação séria, raramente explicada em revistas de arqueologia. É (também) frequente ler que o crânio do rei medieval A foi “identificado”, o cadáver do faraó B do terceiro milênio a.C. ou, até, que o DNA do Sudário de Turim poderia ser de Jesus Cristo.

4.Um sudário sem DNA.

     É neste "podería" que reside toda uma gama de diferentes possibilidades genéticas associadas a uma identificação positiva de uma pessoa que presumivelmente morre no ano 33 d.C. Seria possível identificar o sangue presente no Sudário? Atualmente, a resposta é não. É sem dúvida uma pergunta interessante. Focando a atenção no Sudário guardado em Turim, qual seria o objetivo em identificar esse sangue como sendo o Cristo? Embora possa parecer contraditoria, a questão poderia interessar tanto à comunidade científica, como à teológica. Existem muitas investigações centradas neste Sudário, tentando decifrar uma imagem hipotética, a composição do próprio tecido, para saber se as manchas seriam ou não sangue, assim como, possiveis datações tanto do tecido como das possíveis evidências biológicas. Sería a identificação genética possível? 
     Como explicado anteriormente, dada a antiguidade do caso, aproximadamente 2000 anos, a análise genética que proporcionaria os melhores resultados seria a análise de marcadores de linhagem - análise do DNA mitocondrial, transmitido exclusivamente pela via materna, ou análise do cromossoma Y, cuja transmissão ocorre de forma similar à do DNA mitocondrial, mas desta vez, por vía paterna. Nesse caso em particular, o estudo genético abriria uma série de questões interessantes. Por um lado, a análise do cromossoma Y seria teoricamente inviável já que, segundo a tradição, Jesus não teria nem pai humano, nem uma descendência masculina com a qual comparar na actualidade, pelo que essa análise não seria informativa. Por outro lado, comparar o possível DNA mitocondrial com possíveis parentes maternos, como descendentes de possíveis sobrinhos, por exemplo, poderia ser útil. Contudo, até agora nunca foi sido possível encontrar um túmulo familiar, com uma inscrição específica que ateste que, de alguma maneira, foi ou foram enterrados naquele local específico um parente de Jesús Cristo. Por outras palavras, não há referência para uma possível comparação.
Outro ponto interessante seria a datação das amostras, embora, neste caso, não sirva como evidência.       De facto, a datação de uma amostra biológica (um osso, por exemplo) daquela época não significa que a amostra pertença a uma pessoa específica. Um osso datado do ano 33 d. C podería pertencer a qualquer individuo daquela época e região. Na realidade, o mais próximo possível de uma possível identificação seria, por exemplo, a presença de documentação escrita, associada a uma datação da amostra.

Estudos realizados no Sudário de Turim. Fonte: Google.

Estudos realizados no Sudário de Turim. Fonte: Google.

5. Se o sudário tivesse DNA e a cabeça fosse de Mozart...

     Não é tanto a idade ou antiguidade da amostra que determina a possível obtenção ou não de resultados, uma vez que existem vários estudos genéticos em amostras francamente mais antigas, como do Período Neolítico ou da Idade do Bronze europeia. Na verdade, um problema muito particular presente em quase todas as amostras antigas (e famosas) está relacionado com a sua manipulação ao longo dos anos e séculos. Como saberíamos se o DNA analisado pertenceria à amostra e não a uma das dezenas de pessoas que tocaram na amostra?


     Todas as identificações têm um objetivo. Na genética forense, o objetivo é identificar um suspeito, identificar uma possível pessoa desaparecida, identificar uma vítima, identificar a presença de um indivíduo em um determinado local. Na História, qual seria o objetivo? Qual seria o intuito para descobrir se a cabeça encontrada era realmente a de Mozart? Um possivel resultado negativo podería modificar a nossa estima e admiração pelo génio? O que pode justificar a procura incessante para saber se o sangue é realmente o de Jesus? De facto, nos últimos anos, houve uma tentativa cada vez mais desesperada de identificar diversas figuras históricas com implicações significativas na História da Humanidade. Podería um teste genético mudar séculos de história ou culto? Será que a História necessita realmente dessa "aprovação" biológica para certificar que uma determinada pessoa realmente existiu? Ou será a própria necessidade do ser humano em procurar a resposta para suas próprias perguntas, uma busca incessante pela confirmação de sua própria identidade e crença? Possivelmente, a busca por conhecer a identidade de figuras históricas ajuda-nos a acreditar e a construir a nossa própria identidade como sociedade, comunidade e, acima de tudo, como pessoa.

Bibliografía: