Perdida na História

Perdida na História

sexta-feira, 6 de abril de 2012

A morte de Sócrates

Ainda hoje este processo está envolto em polémica. Um professor é acusado de corromper a juventude.O paradoxo neste caso resulta do facto de todas as circunstâncias se desenrolarem numa cidade cuja tolerância é proverbial na Antiguidade. A morte de Sócrates permanece por vezes como um tabu na História: levanta a eterna questão de saber em que medida um professor pode exercer uma má influência sobre os seus alunos.


"O processo e a condenação de Sócrates testemunham o perigo que a ignorância faz correr ao saber, que o mal faz correr à virtude. Mas este perigo não é senão aparente, pois, na realidade, é o justo que triunfa dos seus carrascos se bem que seja vítima deles, o triunfo de Sócrates sobre os seus juízes data do dia da sua execução."
( in Jean Brun, página 80)

Acusado: Sócrates

      O processo contra o filósofo tem inicio em 399 quando um indivíduo chamado Meletos apresenta uma queixa no cartório do arconte-rei - magistrado superior encarregado dos casos de assassinato e sacrilégio:

"Sócrates é culpado de não reconhecer os deuses reconhecidos pelo Estado e de introduzir divindades novas; é culpado também de corromper jovens. A pena pedida é a morte."

      É ao tribunal de Helieia que cabe julgar esta graphe asebeias, ou acusação impiedosa. Recrutados por por sorteio, os heliastas ou juízes de Helieia são em número variável de 201 a 2501, segundo a importância do processo. Para julgar a morte de Sócrates serão 501. Cada uma por sua vez, acusação e defesa tomam a palavra, sendo o tempo limitado pela clepsidra ou relógio de água.





      Uma vez que em Atenas não existia Ministério Público, a acusação é sempre feita por um particular. Meletos, que apresentou queixa contra Sócrates, é uma personalidade bastante insignificante, filho de um poeta trágico.
      Meletos era um poeta trágico novo e desconhecido de cabelo raro, barba escassa e nariz adunco, era o acusador oficial, porém nada exigia que ele como acusador oficial fosse o mais formidável, hábil ou ameaçador, mas somente aquele que assinava a denúncia. Apresentava a classe dos poetas e adivinhos.  O mais estranho é Meletos parecer não conhecer bem quem está a acusar, dado que muitas vezes confunde Sócrates e os seus ensinamentos com os de um outro imponente filósofo da época, Anaxágoras.

       Efectivamente, o principal agente de acusação é Anytos, rico proprietário de uma oficina de curtumes, influente pelas suas relações e pela sua vida política ateniense. Um terceiro acusador, o orador Lícon, pouco intervém nos discursos.
      Pouco se sabe de Lícon. Era um retórico obscuro e o seu nome teve pouca utilidade e autoridade no decorrer da condenação de Sócrates. Representava a classe dos oradores e professores de retórica. Talvez Lícon pretendesse a condenação de Sócrates, devido ao seu filho ter-se deixado corromper moralmente, filosoficamente e sexualmente por Callias, e Callias era um associado de Sócrates.



A defesa

      As acusações de impiedade e de corrupção da juventude traduzem bem os movimentos de opinião que o comportamento de Sócrates suscita.
      Curiosamente, Sócrates não era uma figura esbelta: era um homem idoso, com mais de setenta anos; baixa estatura; feio e quase disforme; proveniente de um meio bastante modesto, onde o pai era escultor e a mãe parteira; e sem fortuna, visto não levar dinheiro pelo seu trabalho como professor.



      Todo o problema começa com a sua ironia que, apesar de bem vista aos olhos dos amigos, acaba por se tornar algo temível aos olhos daqueles que passam a ser seus inimigos. Sócrates põe em causa convicções adquiridas. A sua famosa técnica de "maiêutica", ou iluminação dos espíritos, é imparável e valeu-lhe muitas inimizades.

      Para sua defesa, Sócrates recusa toda a defesa alheia. Demonstra que a sua vida falará a seu favor, ao mesmo tempo que submete os acusadores a um inquérito duro, conforme o seu hábito.
A impiedade é o primeiro ponto de acusação. Meletos afirma que Sócrates nega a existência dos deuses. Absolutamente mentira, responde Sócrates. Afirma que respeita a religião nacional. O "demónio" que o inspira não é senão uma das aparências dos deuses reconhecidos:

"Será que estou a introduzir divindades novas, quando declaro que uma voz divina se me faz ouvir para me indicar o que devo fazer?" 




      O segundo ponto de acusação recai sobre a sua influência nos pupilos e juventude. É verdade que Sócrates recruta jovens, nobres, de famílias abastadas que normalmente são mais desprendidos relativamente às crenças nacionais. De facto, o caso da mutilação das estátuas de Hermes e da paródia aos mistérios de Elêusis foi imputado ao mais fiel seguidor de Sócrates, Alcibíades.





      Então Sócrates inquiriu o acusador Meletos acerca de quem é que melhorava a cidade. Meletos citou primeiro os juízes; depois gradualmente, acabou por dizer que todos, excepto Sócrates, melhoravam a cidade. Então Sócrates congratulou a cidade pela sua boa fortuna e referiu que era melhor viver entre homens bons do que entre maus; e portanto não podia ser tão irracional que devassasse os concidadãos intencionalmente; mas se era sem intenção, Meletos devia instruí-lo e não persegui-lo. Sócrates também destacou que entre os assistentes havia discípulos seus e pais e irmãos deles; nenhum foi chamado a testemunhar que ele corrompia a juventude.


Sócrates tenta afastar Alcibíades do prazer

      Opôs-se a seguir o costume de apresentar os filhos chorosos para comover os juízes. Tais cenas tornavam ridículos o acusado e a cidade. A sua função era persuadir os juízes e não pedir-lhes um favor.

      "Diz-nos Meletos, se conheces um jovem que pela minha influência se tenha transformado de piedoso em ímpio, de moderado a violento, de temperamental em pródigo, de sóbrio em bêbado, de trabalhador em preguiçoso, ou, enfim, escravo de qualquer outro prazer..."

E prossegue Sócrates:

      "Tal como os doentes dão mais ouvidos aos médicos do que aos pais e que, para chefiar a guerra, se escolhem os melhores estrategas, também a minha reputação enquanto professor faz com que, no domínio da filosofia, os jovens confiem mais em mim do que nos próprios pais." 

A morte

      Defendendo sempre a forma e o conteúdo dos seus ensinamentos, Sócrates percebe que o seu destino está traçado. Assim, desde o início do seu julgamento o filósofo deixa bem patente que a morte não o atemoriza.




      Dos 501 heliastas, 280 pronunciam-se a favor da culpabilidade do acusado. De acordo com o costume, perguntam a Sócrates qual a pena que prefere: "Ser alimentado no Pritaneu", responde o filósofo, reclamando dessa forma a maior recompensa que o Estado pode oferecer aos cidadãos. É condenado a beber cicuta.


cicuta

      Só passado um mês a pena pode ser aplicada. Como todos os anos, a galera sagrada- conhecida por galeria salaminiana- conduzira a Delos a delegação encarregada de celebrar o aniversário da luta entre Teseu e o Minotauro e, durante a sua ausência, nenhuma execução pode ter lugar em Atenas.

      Na sua cela, Sócrates passa o mês a filosofar com os seus amigos. Estes tentam convencê-lo a evadir-se e fornecem-lhe os meios para tal mas, fiel às suas convicções cívicas, o velho homem recusa por não querer infringir as leis da cidade.



      No dia seguinte ao da chegada da trirreme sagrada ao Pireu, Sócrates bebe o veneno sem sinal de transtorno, depois de ter dissertado sobre a imortalidade da alma. Reconforta os amigos chorosos e desolados. Estiveram presentes todos os amigos de Sócrates excepto Aristipo, Xenofonte (estava na Ásia) e Platão (estava doente), Xantipa e seus filhos.
      Recusou ser vestido depois de morto por uma rica túnica que Apolodoro lhe havia trazido, preferia o seu manto que havia sido bastante bom até ali e que continuaria a sê-lo depois da sua morte.


    Assim que começou a sentir as pernas pesadas deitou-se, tal como lhe havia recomendado o carcereiro. O veneno iria subindo progressivamente, até que quando chegasse ao coração seria o fim. Sócrates proferiu então:

"Críton, somos devedores de um galo a Asclépio; pois bem pagai a minha dívida, pensai nisso".

      Críton ainda lhe perguntou se não teria mais nada a dizer, mas estas foram as suas últimas palavras. Sócrates após um último sobressalto morreu e o seu amigo Críton fechou-lhe os olhos.
      Os relatos afirmam que a morte o surpreende no momento em que os últimos raios de sol desaparecem por detrás das encostas do Himeto.


Testemunhos

      Tanto o historiador Xenofonte como o discipulo e amigo Platão que o acompanham nos seus últimos dias de vida, consagram-lhe várias obras, muitas referentes aos seus últimos dias de vida.
      Há filósofos que acreditam que Sócrates recusou-se a defender perante o tribunal popular indo de encontro à sua condenação porque o seu demónio nada lhe disse para se afastar da condenação.

      Existem ainda autores que consideram que a descrição da morte de Sócrates no Fédon de Platão é completamente inconsistente com os efeitos conhecidos da cicuta. Pensam portanto que no relato da morte de Sócrates alguém estava a mentir.

"Para dizer a verdade, discípulos, propriamente não tive nenhum. Se alguém quiser ouvir-me quando falo, quando me desobrigo do meu ofício, jovem ou velho, não recuso esse direito seja a quem for. Não sou desses que só falam quando são pagos e que não falam de maneira nenhuma quando não lhes pagam. Não, estou á disposiçãodo pobre como do rico, sem distinção, para que eles me interroguem ou, se preferirem, para que eu os interrogue e eles escutem o que tenho a dizer-lhes. Depois disto, se algum deles se portar bem ou mal, com que direito pode isso ser imputado às minhas lições, se eu não prometi nem dei lições a ninguém?"
Platão, Apologia de Sócrates, 33    

Fontes:
http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/escola/socrates/mortedesocrates.htm
Astier et al, (2000), Memória do Mundo, Cículo de Leitores

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