Perdida na História

Perdida na História

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Lucrécia

Com uma família muito carismática e poderosa, Lucrécia Bórgia permanece na História como um verdadeiro enigma. São-lhe atribuídos verdadeiros actos de horror, desde envenenamento, a assassinatos, a conspirações... No entanto, tudo parece mudar de forma quando confrontado com documentação da época. Santa ou vilã? Uma certeza existe: a sua vida foi extremamente difícil.



      Durante todo o dia 4 de Setembro, de 1501, os canhões do Castelo de Sant'Angelo, Roma, não pararam de troar. A filha biológica do Papa Alexandre VI Bórgia acaba de desposar o herdeiro do ducado de Ferrara, tendo assim, ingressado numa das mais importantes famílias de Itália, por meio de um dote prodigioso. Tem 21 anos e Afonso é o seu terceiro marido.
      O seu primeiro marido fora afastado por seu pai; o segundo, assassinado pelo seu irmão: qualquer que tenha sido o papel da bela Lucrécia no fim dos seus casamentos, a verdade é que é perseguida por uma reputação explosiva...

A filha querida

      Alexandre VI é ainda o cardeal Rodrigo Bórgia quando em 1480 a sua favorita, Vanozza Catanei traz Lucrécia ao mundo. Eclesiástico muito apreciado no meio feminino, ele tem já filhos de outras ligações, e Vanozza dá-lhe também três rapazes: César, João e Jofre. Na Igreja, antes da Contra-Reforma, os prelados têm uma vida de verdadeiros senhores, mais do que eclesiásticos, e a situação de Rodrigo não é excepcional. De facto, além de ser pai, Rodrigo tem uma verdadeira paixão pelos filhos.
     

      Quando completou nove anos, Lucrécia foi separada dos irmãos: João seguiu para a Espanha. César,  obrigado pelo pai, entra para a vida religiosa, mesmo sem a menor vocação (aliás, mais tarde abandona o sacerdócio); e a própria Lucrécia foi enviada para a casa de Adriana de Milão, dama da nobreza e viúva, a fim de receber uma educação erudita ao lado da rigorosa senhora. Adriana era a mãe de Orsino Orsini, rapaz com a mesma idade de Lucrécia e recém-casado com uma jovem beldade de 14 anos chamada, Júlia Farnésio. Júlia apesar de casada, logo se torna amante do cardeal Rodrigo Bórgia, pai de Lucrécia, todos foram coniventes com isso, devido ao alto cargo do cardeal.

      Aos doze anos, Lucrécia vê o pai tornar-se Papa, Alexandre VI, instalando toda a família num palácio contíguo ao Vaticano, Santa Maria in Portico. Além de Lucrécia e de Vanozza, vivem também no palácio Júlia Farnésio-a sua nova concubina- e Adriana de Milão.
      Por incrível que pareça, as três mulheres vivem em harmonia, e Lucrécia cresce feliz.  Se por um lado tentam designá-la como sobrinha do pontífice, ninguém ignora a verdadeira origem de Lucrécia.
      O próprio Savonarola diz que "os mais altos dignitários, cardeais ou embaixadores, vêm submeter as suas petições às mulheres do papa",  além disso, este mesmo pregador vocifera em toda a Florença contra os vastos e longos pecados do papa.    

Lucrécia


O pesadelo do 1º casamento

      Alexandre ama a filha e preocupa-se em lhe arranjar um bom casamento. Com 13 anos, a rapariga é um partido muito atraente, a sua beleza em breve se torna célebre. Além da sua estonteante beleza, com os seus longos e esbeltos cabelos ao vento, contra as convenções da época, Lucrécia leva consigo algo muito mais atraente: muito dinheiro e muitos benefícios eclesiásticos, bem mais atraentes do que a rapariga.


     
      O marido escolhido é João, conde de Pesaro, membro da poderosa casa dos Sforza, dona do ducado de Milão. Em breve, o papa arrepende-se de tão vil escolha. Além de maltratar a esposa, o conde não tem hipóteses de herdar o ducado. A juntar a tudo isto, começam as guerras de Itália. O rei de França, aliado dos Sforza, parte em conquista de Nápoles, dependência de Aragão. O papa não pode aceitar que os seus território fiquem entalados entre o Norte e o Sul, entre duas potências aliadas (a Norte os Sforza, a Sul o rei de França a controlar Nápoles), partindo em defesa dos Aragoneses.
      Conscientes da situação, a família Sforza faz correr o boato que o papa está prestes a assassinar Pesaro com a cumplicidade de Lucrécia. Com este embuste, Lucrécia adquire a fama de "envenenadora".

      O papa pretende libertar rapidamente a sua filha da família Sforza. Para tal, intima João Sforza a reconhecer que não consumou o matrimónio. Até neste episódio a astúcia Sforza se fez sentir. João divulga aos quatro cantos que o papa quer a dissolução do matrimónio para seu próprio uso. Desta vez, é o próprio amor paterno que está em causa: Lucrécia vê-se em volta de um manto de boatos, que corre por toda a Itália, de que mantém relações incestuosas com o próprio pai...

Novamente, pretendentes.

      As horríveis e infernais calúnias que perseguem Lucrécia não fazem, contudo, diminuir o número de pretendentes. César Bórgia, filho do papa e irmão de Lucrécia, comanda os exércitos papais e aspira a uma união com o Reino de Nápoles. É de todo conveniente que Lucrécia case com Afonso Biscèglie, filho bastardo do soberano deste reino. As bodas são celebradas em 1497.



Mudança de planos

      Em 1500, César Bórgia, que entretanto revira as suas alianças e concluíra um pacto com França, assassina friamente o jovem cunhado. Lucrécia nada tem a ver com este crime. Curiosamente, ou não, toda a Itália a aponta como a verdadeira culpada. A jovem a quem nunca ninguém perguntou opinião, volta a casar, um ano depois.

Dama Ferrara

      O novo eleito é o duque de Ferrara. Mas Lucrécia não é mais criança, e o pai confia-lhe responsabilidades. Nomeia-a aos 19 anos governadora de Spoleto, alto cargo até então reservado a prelados. Espantosamente, Lucrécia governa realmente: organizando um corpo de polícia ou concedendo tréguas à cidade vizinha.
      


      Em 1501, durante algumas semanas, Lucrécia é mesmo incumbida de dirigir a Igreja, enquanto o papa vista os seus territórios. Instalada nos aposentos papais, ela trata dos assuntos correntes e abre o correio papal. Contudo, é no papel de Dama de Ferrara que Lucrécia atinge a sua verdadeira dimensão. Acolhida inicialmente com suspeição, em breve conquista a lealdade dos súbditos, pela constância que impõe na governação. Lucrécia atrai para o ducado poetas como Pietro Aretino ou Pietro Bembro.

Morte do Papa

      Em 1503 morre o papa. Lucrécia retoma então o sonho dos Bórgia, constituindo um Estado territorial na Itália Central e comprometendo-se a auxiliar César Bórgia, recrutando-lhe tropas.
       Porém, o novo papa, em tudo hostil aos Bórgia, desencadeia em 1509 as hostilidades contra o duque de Ferrara, que permanece fiel ao rei de França. Na ausência do marido, Lucrécia toma em mãos os assuntos do Estado, prosseguindo a resistência até à morte de Júlio II, em 1513.

A resistência

       Toda a sua resistência talvez tivesse uma conotação religiosa. Em 1519, exactamente no ano da sua morte, Lucrécia converte-se à Reforma, proclamada apenas dois anos antes por Lutero. Esta mulher conhece melhor do que ninguém a religião Católica, e principalmente os seus Costumes, escolhendo o campo daqueles que a querem transformar.
     
       Contudo, outras fontes referem que Lucrécia terá permanecido católica até ao fim, pedindo mesmo uma benção a Leão X, o novo papa, aquando das severas complicações que sofreu num parto, complicações essas de que virá a falecer.
      Infelizmente, a História nunca lhe perdoará: os horrores que lhe são atribuídos pelos contemporâneos serão repetidos, repetidos, repetidos, ecoando por toda a História. 

Fonte: Astier et al., (2000), Memórias do Mundo, Circulo de Leitores

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